terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Brigas... e Depois? (Chico Buarque de Holanda)


Eram meras questões de minutos. E o encontro dos namorados mais parecia um duelo de ciúmes.

— Você chega sempre atrasado.

— É, sei. E ontem, quem é que ficou aqui esperando, que nem um pateta?

— Ah, eu só atrasei dois minutos. Hoje você atrasou dez.

— Você é que chegou adiantada. Mas deixa que qualquer desses dias eu descubro o que você tanto faz, que nunca chega na hora certa.

E as discussões se sucediam, sem pé nem cabeça. Mas ciúmes são cegos como o próprio amor. São sentimentos mesquinhos, minuciosos, não esquecem a insignificância dos mínimos segundos. As batidas do coração jamais deveriam se escravizar aos tiquetaques desencontrados de dois relógios diferentes.

A verdade, porém, é que eram ambos loucos, um pelo outro, e seus corações acabavam por se entender, num ritmo comum de compreensão. E as hostilidades descansavam invariavelmente em beijinhos e mil perdões.

— Desculpe, viu, amor?

— Que nada, meu bem, a culpa foi toda minha.

— Não, eu é que fiquei nervosa.

— Deixa disso, eu banquei o bruto.

Por pouco não voltavam a discutir.

Assim correram muitos meses e muitas, muitas brigas, e os dois não chegavam a um acordo. Mas a vida tem dessas coisas. Quando se dá conta, a felicidade já é irremediavelmente retrato na parede, cartinha na gaveta, passando.

Alguns anos mais tarde, ela se casava com um rapaz bonito, tipo galã da Metro. Viveram em harmonia, sem brigas, sem discussões, talvez por falta de imaginação do atlético marido.

Por outro lado, o antigo namorado da adolescência não tardou a se apaixonar pelo lindo dote de uma mocinha que era um tesouro, filha de próspero industrial. Embora se tratasse de uma menina meio café-com-leite, sua herança lhe dava um quê de exótico. Alimentava por ela uma intensa, excêntrica paixão, enquanto que o bonachão rodava com seu Rolls-Royce, jogava em Monte Carlo e repousava em seu iate transatlântico. E numa atitude de misericórdia, suportava, geralmente, como um senhor onipotente, os carinhos milionários da esposa.

Muito tempo depois, porém, por um desses acasos que só o destino sabe explicar, os dois antigos namorados se encontravam nas areias de Copacabana, que é a praia onde todos vão. Já não eram os mesmos. Ele parecia carregar os milhões matrimoniais na respeitável barriga. Ela continuava encantadora, mas apenas na medida que possa encantar uma mulher de cinqüenta anos. Conversaram pouco, o silêncio disse mais. E voltaram a se encontrar, com mais freqüência e menos acaso. Já eram, no entanto, velhos demais para as inflamadas e inúteis discussões dos dezessete anos. Caminhavam calmamente pela areia molhada, mão na mão, por mais ridículo que possa parecer para a sua idade. Caminhavam sem rumo, sem tempo, sem horizonte. E quando se voltavam, sentiam a nostalgia da vida perdida em poucos minutos.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Sobre a Escrita... (Clarice Lispector)



Meu Deus do céu, não tenho nada a dizer. O som de minha máquina é macio.

Que é que eu posso escrever? Como recomeçar a anotar frases? A palavra é o meu meio de comunicação. Eu só poderia amá-la. Eu jogo com elas como se lançam dados: acaso e fatalidade. A palavra é tão forte que atravessa a barreira do som. Cada palavra é uma idéia. Cada palavra materializa o espírito. Quanto mais palavras eu conheço, mais sou capaz de pensar o meu sentimento.

Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino invólucro dos nossos pensamentos. Sempre achei que o traço de um escultor é identificável por um extrema simplicidade de linhas. Todas as palavras que digo - é por esconderem outras palavras.

Qual é mesmo a palavra secreta? Não sei é porque a ouso? Não sei porque não ouso dizê-la? Sinto que existe uma palavra, talvez unicamente uma, que não pode e não deve ser pronunciada. Parece-me que todo o resto não é proibido. Mas acontece que eu quero é exatamente me unir a essa palavra proibida. Ou será? Se eu encontrar essa palavra, só a direi em boca fechada, para mim mesma, senão corro o risco de virar alma perdida por toda a eternidade. Os que inventaram o Velho Testamento sabiam que existia uma fruta proibida. As palavras é que me impedem de dizer a verdade.

Simplesmente não há palavras.

O que não sei dizer é mais importante do que o que eu digo. Acho que o som da música é imprescindível para o ser humano e que o uso da palavra falada e escrita são como a música, duas coisas das mais altas que nos elevam do reino dos macacos, do reino animal, e mineral e vegetal também. Sim, mas é a sorte às vezes.

Sempre quis atingir através da palavra alguma coisa que fosse ao mesmo tempo sem moeda e que fosse e transmitisse tranqüilidade ou simplesmente a verdade mais profunda existente no ser humano e nas coisas. Cada vez mais eu escrevo com menos palavras. Meu livro melhor acontecerá quando eu de todo não escrever. Eu tenho uma falta de assunto essencial. Todo homem tem sina obscura de pensamento que pode ser o de um crepúsculo e pode ser uma aurora.

Simplesmente as palavras do homem.