terça-feira, 27 de outubro de 2009

Fragmentos disso que chamamos de "minha vida". - Caio Fernando Abreu
















Há alguns anos. Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.

Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de "minha vida". Outros fragmentos, daquela "outra vida". De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.
Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.
Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector "Tentação" na cabeça estonteada de encanto: "Mas ambos estavam comprometidos.
Era isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.
Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

- Pois bem, vamos ao meu problema:

Há muito tempo não sinto dor, há anos não sinto dor.

Falo de dor no peito, dor que pega, esmaga, aperta, assola. Falo de dor de amor, de dor de horror, de paixão, de renegação, de abandono, de desencontro. Falo de dor sentimental, emocional, besteiral.

Não adoeço mais do coração, não perco a fome por emoção, não emagreço de paixão, não engordo de tensão.

Me calo quando qualquer um berraria de dor, rio quando qualquer um choraria de pavor, fico inerte qualquer um sorriria de amor. E não entendo por que....

Reviro as gavetas velhas e empoeiradas em busca de algo que me oriente, volto aos cantos escuros da minha memória e do meu passado tentando ver explicação, não encontro razão em nenhum livro, nenhum artigo, com nenhum médico, cartomante, benzedeira, curandeira ou macumbeira.

Há quem ache que seja psicológico, uma daquelas coisas que chamam de psicopatologia, para esses eu conto o mistério que sou para os psiquiatras, sim, para os psiquiatras, porque os pobres psicólogos já desistiram de mim. Visito e revisito consultórios, chego a deixar a marca da minha bunda nos divãs, tamanho tempo que passo sentada neles e ninguém, nada explica ou resolve minha inércia emocional.

A bem da verdade acho que meu coração desenvolveu algo que nenhum cientista suspeitaria... anticorpos cardíacos. Sim! Meu coração é o único que desenvolveu anticorpos, entre tantos outros corpos nesse mundo. Minha autodefesa “imunocardíacaemocional” combate qualquer princípio de “microorganismosentimento” que possa alterar o ritmo de seus batimentos afetando assim a minha indiferença geral, qualquer “microorganismoemoção” que possa me desidratar uma lágrima que seja.

Não querido, não se engane! Eu não preciso de transplante! Vocês todos é que precisam.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

É incrível como cada um tem uma forma bem particular de escrever, tentei inutilmente criar uma resposta para a última postagem do Igue ( www.entredoiscafes.blogspot.com ).
Está longe de ter a qualidade do texto dele, mas posto aqui pra mostrar a abismal diferença entre as maneiras particulares de escrever e de ver a mesma história.



Não se lamente amigo,
Esse mesmo tempo que agride a tua pele
Carrega pra longe as tuas façanhas.
Esse dia que pro teu lamento é um a mais,
Pra ti mesmo é só mais um a menos.
Se a tua vontade é essa, vá...
O que você tem a perder é o que você diz que tem de mais mesquinho.
Não fale de medo, coragem, inveja, curiosidade.
Dê permissão à sua vontade
Agora que você descobriu pra onde vai,
Suba!
Dance como ele no parapeito do prédio
Dance a liberdade que você deseja e não se permite
Dance a raiva que você sente e reprimi.
Dance!
Dance a alegria de um quase suicídio!
Dance o medo de uma quase salvação!
Dance o que você odeia
Dance no limiar do prédio e da queda.
Dance o tempo que durar a firmeza do que pisa
Dance o tempo que durar a leveza da queda livre...
E se a sua sensação de liberdade se eternizar, não se preocupe
Eu trato o seu gato!