domingo, 9 de maio de 2010

Tenho muita coisa para escrever e pouco tempo para colocar as idéias no lugar.

Clarice fala por mim:

"(...) Sim, esta é a vida vista pela vida. Mas de repente esqueço como captar o que acontece, não sei captar o que existe senão vivendo aqui cada coisa que surgir e não importa o quê: estou quase livre de meus erros. Deixo o cavalo livre correr fogoso. Eu, que troto nervosa e só a realidade me delimita.
E quando o dia chega ao fim ouço os grilos e torno-me toda repleta e ininteligível. Depois vivo a madrugada azulada que vem com o seu bojo cheio de passarinhos - será que estou te dando uma idéia do que uma pessoa passa em vida? E cada coisa que me ocorra eu anoto para fixá-la. Pois quero sentir nas mãos o nervo fremente e vivaz do já e que me reaja esse nervo como buliçosa veia. E que se rebele, esse nervo de vida, e que se contorça e lateje. E que se derramem safiras, ametistas e esmeraldas no obscuro erotismo da vida plena: porque na minha escuridão enfim treme o grande topázio, palavra que tem luz própria.
Estou ouvindo agora uma música selvática, quase que apenas batuque e ritmo que vem de uma casa vizinha onde jovens drogados vivem o presente. Um instante mais de ritmo incessante, incessante, e acontece-me algo terrível.
E que passarei por causa do ritmo em seu paroxismo - passarei para o outro lado da vida. Como te dizer? É terrível e me ameaça. Sinto que não posso mais parar e me assusto. Procuro me distrair do medo. Mas há muito já parou o martelar real: estou sendo o incessante martelar em mim. Do qual tenho que me libertar. Mas não consigo: o outro lado de mim me chama. Os passos que ouço são os meus.
Como se arrancasse das profundezas da terra as nodosas raízes de árvore descomunal, é assim que te escrevo, e essas raízes como se fossem poderosos tentáculos como volumosos corpos nus de fortes mulheres envolvidas em serpentes e em carnais desejos de realização, e tudo isso é uma prece de missa negra, e um pedido rastejante de amém: porque aquilo que é ruim está desprotegido e precisa da anuência de Deus: eis a criação.
Será que passei sem sentir para o outro lado? O outro lado é uma vida latejantemente infernal. Mas há a transfiguração do meu terror: então entrego-me a uma pesada vida toda em símbolos pesados como frutas maduras. Escolho parecenças erradas mas que me arrastam pelo enovelado. Uma parte mínima de lembrança do meu bom-senso de meu passado me mantém roçando ainda o lado de cá. Ajude-me porque alguma coisa se aproxima e ri de mim. Depressa, salva-me.
Mas ninguém pode me dar a mão para eu sair: tenho que usar a grande força - e no pesadelo em arranco súbito caio enfim de bruços no lado de cá. Deixo-me ficar jogada no chão agreste, exausta, o coração ainda pula doido, respiro às golfadas. Estou à salvo? enxugo a testa molhada. Ergo-me devagar, tento dar os primeiros passos de uma convalescença fraca. Estou conseguindo me equilibrar.
Não, isto tudo não acontece em fatos reais mas sim no domínio de - de uma arte? sim, de um artifício por meio do qual surge uma realidade delicadíssima que passa a existir em mim: a transfiguração me aconteceu.Mas o outro lado, do qual escapei mal e mal, tornou-se sagrado e a ninguém conto meu segredo. Parece-me que em sonho fiz no outro lado um juramento, pacto de sangue. Ninguém saberá de nada: o que sei é tão volátil e quase inexistente que fica entre mim e eu.Sou um dos fracos? fraca que foi tomada por ritmo incessante e doido? se eu fosse sólida e forte nem ao menos teria ouvido o ritmo? Não encontro resposta: sou. É isto apenas o que me vem da vida. Mas sou o quê? a resposta é apenas: sou o quê. embora às vezes grite: não quero mais ser eu!! mas eu me grudo a mim e inextricavelmente forma-se uma tessitura de vida.
Quem me acompanha que me acompanhe: a caminhada é longa, é sofrida mas é vivida. Porque agora te falo a sério: não estou brincando com palavras. (...)"


Clarice Lispector
Trecho do Livro Água Viva, sem dúvida o meu preferido.

Um comentário:

  1. Clarice é uma ótima escolha, Ramona! São poucos autores como ela que conseguem tornar um pouco mais tangíveis e menos abstratas as nossas sensações e percepções em uma linguagem simples, mas cheia de realidade e de introspecção.

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